segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Presença de Espírito

  Do que li de Machado de Assis, o que mais me marcou - apesar de não lembrar o nome - foi um conto que falava de um discreto funcionário público recém-falecido, em cujos objetos encontrados por parentes no momento entre sua morte e o enterro, havia um diário. Este livreto, em vez de uma sequência de atividades e impressões cotidianas, era uma lista de parentes, amigos e conhecidos do falecido. Para cada pessoa nessa lista, havia uma descrição sucinta , precisa e implacável. Um parágrafo. Cada filho, primo, colega de trabalho, contraparente, amigo de infância etc Enfim, todos seus contatos mais próximos, menos de 30 pessoas. Seus filhos e primos encontraram o pequeno diário e um a um procurou a si mesmo na lista, além de ler as descrições dos outros. Quem fora infiel, quem era mau-pagador, quem era culto-de-almanaque, estava tudo ali.  Sem afetação na descrição de defeitos e qualidades, um texto sem gordura. Tudo na mosca. Todos se entreolharam num misto de constrangimento pelas suas próprias descrições e um prazer um tanto sádico pelas descrições alheias. Logo ele, que era capaz de passar um longo almoço de família quase sem abrir a boca, apenas fumando seu cachimbo. Não era antipático, sorria com pequenos olhos de castor através da fumaça. Apenas falava pouco. Sua presença passava em branco, tinha o dom da invisibilidade. Mal sabiam o quanto ele percebia e guardava em si.
   No enterro, pouco se falou alto e muito se cochichou. O diário causara um efeito devastador nas impressões gerais anteriores sobre cada um dos presentes, quase todos descritos na lista. Santos caíram e falsos devassos ganharam uma nova luz. Optaram por destruir o perigosíssimo documento, mas o estrago já estava feito.
   Li esse conto apenas uma vez e não tenho certeza em que livro se encontra. Lembrar é recriar, peço perdão para os Machadófilos por alguma imprecisão. Tinha a fantasia de ser descoberto como um artista de grande talento após a minha morte prematura. Após enterrar dois grande amigos e parceiros musicais ainda na casa dos 40,  e voltar de um checkup em que está tudo OK, contento-me em ser aquele cara que está sempre por aí e você nem percebeu. O tempo não passa para mim, talvez eu seja um vampiro. Se liga, estou prestando atenção em vocês. Mais com meus ouvidos do que meus olhos. O dom da invisibilidade não possuo, mas estou aprendendo a hipnotizar. Tenho tempo, muito tempo.

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