sábado, 29 de agosto de 2015

Flash Urbano 14 - Bar das Putas


      Uma ocasião ele a levou a um bar na praia onde as putas se encontravam, pegavam clientes e descansavam entre os trabalhos. Conhecido como Bar das Putas. Conversaram sobre política, bolsas de estudo científicas. Debocharam de relacionamentos anteriores enquanto tomavam chopes e observavam divertidamente as negociações em andamento ao redor. Suspeitavam - não sem alguma culpa - de que participavam de uma elite. Bonitos, inteligentes, cultos, bem-nascidos e acreditavam não julgar ninguém.  Mimados e não mais tão jovens. A vida já lhes sorrira um bocado, agora começava a cobrar as dívidas.  Através dos anos, já tinham destruído corações ao longo de uma grande área geográfica. 
      Um ambiente antropologicamente rico e decadente como aquele deixava os ânimos exaltados. O número de frases espirituosas disparadas por minuto naquela mesa de alumínio não deixava o sexo, tão presente ali, interferir na conversa. Não havia necessidade da sedução, já haviam passado desta fase. Era apenas um adiamento do que iria inevitavelmente acontecer. Eles gostavam de provocar. Ele pagou a conta em dinheiro. Um táxi os esperava na porta. Foram para a casa dela e treparam a noite inteira como se não houvesse amanhã. E, de fato, não havia. 

Flash Urbano número 13 - bandeira

      Ainda tinha mais a dizer. Impressões a compartilhar. Compartilhavam um humor espirituoso quase debochado que havia se tornado uma marca. Qualquer assunto, qualquer notícia poderia se encaixar nessa linguagem que haviam criado. Mas não havia sentido, aquela porta havia se fechado.  Continuar enviando mensagens pelo celular parecia parecia prolongar o sofrimento antes de uma morte certa.  Mas a saudade continuava incomodando. Chegara a escrever uma carta a mão, que nunca chegaria a enviar. Não tinha coragem nem raiva suficiente para destruí-la. Ela repousava como um fóssil dentro do caderno. As três versões do manuscrito.  Parecia ridículo. Havia aberto seu coração e compartilhado seus sentimentos de um jeito que não fazia há vários anos. Não havia volta , destruíra seu personagem de misterioso. Agora era o apaixonado rejeitado que balbuciava boleros que não sabia a letra.
      Ela ainda fraquejava. Havia optado por impulso o fim por telefone. Tinha medo de vê-lo, medo de ouvir sua voz. Havia tanto por fazer. Viajar para a Europa, dançar, ir à praia. Casar, ter filhos, tudo que protelara em prol da carreira e de que tanto ouvia falar. Precisava saber como era. Ele não se encaixava nos seus planos. Muitos reajustes. Não, tudo devia ser como havia planejado, se não seria errado. Mas volta e meia ainda se lembrava dele e seus lábios se abriam ao deixar sair um suspiro discreto em frente ao computador.



sábado, 22 de agosto de 2015

flash urbano número 12 - a volta da mulher-gato

   Estava decidida a dar para ele. De preferência hoje. Não houvera um processo consciente sobre a mudança de direção. Simplesmente havia acordado com esta decisão. Sabia que não devia requentar esse caso, que ia dar merda, mas não importava. A trepada seria incontornável. Ela sabia que ele estaria disponível em qualquer condição que ela impusesse. Não havia culpa, não havia sofrimento. Não havia frieza, e sim a tranquilidade quase zen frente ao inevitável. O sexo seria incrível, mas depois ele começaria com aquela lengalenga romântica de sempre.  A ressaca viria mais tarde. Com força. Mas agora não importava, já estavam se despedindo por mensagens de Whatsapp:
-Chego em 15 minutos.
-Ok.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Ciclos

     Acreditava em ciclos. Escolhera acreditar em ciclos. A ilusão da existência de padrões serve como um placebo para a vida e seus descaminhos. Escolher acreditar que uma pílula de açúcar contenha o remédio de que precisa. E essa fé promove processos químicos em seu cérebro que realmente melhoram sua condição. Conseguia felizmente com que a consciência do processo não diminuísse seus efeitos.
     Os ciclos de sete anos pareciam uma bom sistema. O número sete carrega uma mística misteriosa da qual se ouve falar vagamente mas não se sabe detalhes. Ciclos pessoais, profissionais, revolução astral, o escambau. Ceticismo pode ser sexy mas é muito linear. Tudo tem explicação. Tinha simpatia pelo caos, a evolução vinda da tentativa e erro através dos tempos. Darwin, Dawkins, Namedroppings. Era amigo do caos, convivia com o caos. Mas preferia desconfiar de uma ordem secreta. O Karma é uma ideia muito sedutora, muito mais do que o vaidoso culto da personalidade promovido pela Reencarnação. Um bumerangue cósmico acende referências de quadrinhos da Marvel dos anos 60. Um Karma orgânico, autogerido como um coral marinho. Uma colônia. O Universo como um organismo. Sem comissão julgadora. Punições atravessando gerações lhe pareciam uma ideia ingênua. A consciência de um erro pode ser sua própria punicão. A consciência do acerto como porta de entrada para um grande salão iluminado e silencioso. A paz interior como recompensa pela paz interior. Felicidade é silêncio. Todas as religiões seriam  metáforas, fábulas com moral e não manuais de instruções para a vida. A interpretação de texto como porta para dimensões superiores de consciência. A palavra como mágica. A palavra escrita como tatuagem. A palavra dita como presença física. Um corpo de som. A palavra cantada como hipnotismo.
      Escolhera acreditar na paixão, essa obsessão sazonal que tanto foi reverenciada na literatura e que, de tanto ouvimos falar de seus efeitos, aprendemos a criá-la, alimentá-la e senti-la. Ao mesmo tempo que identificava seus processos e suas distorções, abraçava seus efeitos como se inevitáveis. Comprando um ingresso para a montanha russa.  Não sabemos de nada, mas podemos escolher a rádio que toca enquanto dirigimos nossos carros na estrada da vida. Clichês e metáforas com sua eficiência implacável , ainda que mal-vestidos.
       Tinha uma noção superficial das escolas de filosofia, o pouco que lera apontava direções que já havia pensado por si só. Secretamente se parabenizava e preferia ler ficção, poesia e história. Mas o Estoicismo despertava sua simpatia. A vida não lhe deve nada, meu amigo.